Por: Florbela Gil
Maria, uma mulata de quarenta anos, voz muito fininha, era engraçada na sua maneira de falar.
Por: Marina Maltez
CONHEÇO-TE BEM
“Gosto da maldade humana. Lembra-me que existe bondade.” Se um estranho ouvir isto pensará que és altruísta, benévolo, compreensivo, generoso até. Irá imaginar a dimensão da tua hipotética bondade e a tua capacidade de perdão. Talvez até a invejem e pensem “Sim, eu gostava de ser assim, bondoso, sábio e ser capaz de perdoar”.
Consigo visualizar as caras embevecidas diante deste teu discurso e os likes numa qualquer rede social (que apenas te afagam o ego e reforçam o orgulho). Mas essas caras não te conhecem como eu. Não sabem de cor a medida da tua maldade. Não te conhecem a carne de lobo escondida nessa capa de cordeiro que te levou décadas a tecer cuidadosamente, pensada ao mais ínfimo pormenor. Capaz de vergar sábios e encantar corações sedentos de amor.
Esses rostos que te admiram não sabem como eu como a tua língua é puro veneno, é faca afiada capaz de destruir esses mesmos corações que te veneram. Esses rostos que te vêm como mestre não sabem como eu como a tua maldade já cegou, enlouqueceu, rasgou almas que em ti confiaram, como as tuas atitudes se tornam tão mesquinhas ao ponto de deixares um rasto de destruição em silêncio, com medo do que ainda possas fazer.
O diabo sabe muito não por ser diabo, mas por ser velho. E a tua já considerável existência permitiu-te um acumular de frases feitas, de argumentos, de teorias, de comportamentos meticulosos que te dão essa aura de grandeza. Verniz… verniz sem categoria que só se mantém por ser retocado permanentemente.
Ai de quem está ao teu redor. Não sabe que por detrás de cada elogio está a maldade do predador que apenas quer envolver mais uma vítima na sua teia fatal. Não sabem que por trás de cada abraço está venenosa punhalada.
Acreditam na tua bondade… mas não…não te conhecem como eu. Eu vi-te e por te ver tentaste destruir-me. O teu crime só era perfeito sem testemunhas e eu…eu era a versão que ninguém poderia ouvir.
Simplesmente não dizes o meu nome, evitas perguntas inconvenientes ou então contas mais uma historieta de como uma mulher te causou mágoa. Não tens coragem para assumir a tua essência nojenta, mas tão nojenta que até o ventre materno te rejeitava. Vá…escolhe a tua melhor roupa (escolhe bem a marca, tu que detestas gente pobre), coloca perfume (daquele forte numa tentativa vá de camuflar o cheiro de mentira e destruição que vem desse corpo), escolhe as palavras e treina os gestos. Serás Homem capaz de dizer: “Tirei-lhe tudo. Obriguei-a a deixar tudo, família, amigos e a viver apenas para mim, de acordo com as minhas regras, pois só assim seria Mulher.”. Coloca agora aquele ar superior de sábio e mestre (cita um ou dois autores de um livro qualquer de auto-ajuda que suportam as tuas terapias da treta ou então ilustra tudo com um episódio de herói vivido por ti, e que de cada vez que é contado muda de cenário e até de personagens) e continua: “Prometi-lhe o mundo. Mas deixei-a na rua, sem nada. Abandonei-a no leito onde a doença a consumia porque na verdade sou apenas uma espécie de homem, vivo de paixões efémeras, primaveris.”
Mas sabes a verdade? A única verdade? É que o Tempo não perdoa. A idade passa rapidamente por nós. Enche-te dos teus luxos, pavoneia a tua fortuna, colecciona amantes que depois largas na rua da amargura ou encaminhas para um qualquer amigo teu tão imoral quanto tu. Aproveita agora que o teu corpo e mente ainda te obedecem. Não irá durar muito. E quando a noite cair… tu estarás sozinho. Velho. Gasto, consumido. Seco, ressequido. E o teu dinheiro não te irá valer na solidão que te fará perpétua companhia até a terra engolir contrafeita os teus restos. E nesse dia…quando o sol se erguer todas as tuas vítimas irão respirar de alívio. E aqueles que hoje te bajulam terão mil e uma histórias para contar do amigo velho com manias de novo e fanfarrão.
E eu… bem eu não te vou guardar mágoa alguma. Isso seria dar-te uma importância que não tens. Eu estarei no meu mundo, aquele que recuperei, acordarei rodeada de quem me ama e com prazer irei saborear um delicioso galão e pão com manteiga. Sim, adoro a minha pobreza. Nela me revejo e sou feliz! E sei que quando Deus me chamar e o meu corpo voltar à Terra… ela me reconhecerá como parte de si e me estenderá os braços num abraço maternal!
Por: Ana Graciosa
Realidades…
Quando era menina e moça, tinha um amor daqueles que ardia no coração, que arrepiava o corpo todo, desde o dedo mindinho do pé, até à ponta dos fios do cabelo e que me deixava com uma sensação de fraqueza nos membros inferiores, só pela emoção sentida. Adorava gritar ao mundo esse amor, de ouvir e receber as mais bonitas declarações desse amor, de fazer juras e promessas até que a morte nos separasse, de andar de mãos dadas e às cavalitas sem medo de recriminações, da ansiedade de voltar a estar novamente juntos, a vontade de sentir aqueles lábios colados aos meus, num beijo demorado e tão intenso que parecia parar o tempo, de sentir os braços ao meu redor e sentir que era aquele o meu porto de abrigo, de olhar nos olhos e saber o que se pensa sem proferir palavras, de ouvir aquela voz amada e ficar maravilhada, como se de uma melodia se tratasse, de dar e receber, sentir aquelas borboletas todas em alvoroço e não conseguir pará-las ou enxotá-las…
Como conseguimos ser tão inocentes e acreditar no amor eterno ou no "até que a morte nos separe"?
Hoje, mais experiente e colecionadora de algumas mágoas e cicatrizes, sei que tenho vindo a desaprender o que tinha aprendido até “ontem” mas… “amanhã” quero recomeçar a aprender.
Somos atropelados pela vida e tudo acontece muito rápido e mesmo não querendo, algumas lembranças antigas, vêm à tona como um furacão que não respeita absolutamente nada. A sensação de lidar com sentimentos contraditórios e o rebobinar de coisas que doem e trazem algum sofrimento, faz parte de uma viagem indigesta, que temos que abandonar de vez, assim como as “tralhas” de outrora, e deixar que as lágrimas lavem e levem de uma vez por todas, as dores, as culpas e todos os medos sofridos.
Por isso, digo não ao amor e sim ao vamos fazê-lo, sem juras ou promessas, sem títulos ou rótulos. Hoje, mais resiliente, quero algo mais tranquilo, sem complicações e somente sentir a sensação de fidelidade sem obrigação, porque os tombos não me limitaram a capacidade de amar ou sonhar, até porque insisto sempre em acompanhá-los, até que se concretizem ou não.
Sou Feliz, mas quero ser bem mais, daí procurar alcançar todos os dias, o amanhã que é hoje.
Quero ainda aquele abraço de outrora, o beijo apetecido, a cumplicidade no olhar, o carinho e a dedicação de quem nos faz sentir bem, o dar e receber, sentir aquele toque no cabelo ou um mimo a meio da noite e… se com tudo isto, virar amor, aí sim! Tranquilamente aceitamos o que de bom nos pode trazer, independentemente de qualquer rótulo ou situação, simplesmente pelo facto de se estar junto, feliz, de se gostar ou amar e do querer entregarmo-nos sem medos…
Quem nasceu com uma sensibilidade exacerbada, sabe o quão difícil é suportar algumas coisas. Já matei alguns sentimentos em legitima defesa e, fiquei ilibada de me confessar e ciente que não me matam a mim…
Por: Ana Fonseca da Luz
A janela
A minha casa tem uma única janela.
Não preciso de mais...
Dela consigo ver o nascer e o pôr-do-sol.
Lá longe, um campo de trigo enfeitado de papoilas, anunciando mais uma Primavera,
apesar de tudo…
Uma ou duas laranjeiras em flor, andorinhas apressadas a fazerem os ninhos, dois gatos vadios que todos os dias miam à minha janela, anunciando-me que têm fome e que só podem contar comigo e um pequeno riacho, que corre manso, saltando as pedras com uma ligeireza quase felina, ladeado de silvas, que dão as mais doces amoras que alguma vez provei.
Perante esta grandiosidade, onde reina a mais pura das simplicidades, reparo o quanto sou pequena e não consigo deixar de me alegrar com o facto de realmente ter consciência de que nada sou.
Resolvi dar um nome à minha janela.
Chamei-lhe ”a janela da saudade” e sempre que a tristeza me escorre pelos olhos, quando me digo que sou infeliz, sem qualquer razão palpável, corro à minha janela”à janela da saudade”, encho a minha alma com toda aquela beleza simples que os meus olhos enxergam e preencho o coração com todas as boas lembranças de que é feita a minha vida.
A minha casa tem uma única janela.
Não preciso de mais…