Por: Ana Fonseca da Luz
A chegada do frigorífico
Naquele dia, todos acordámos mais cedo do que o costume, excepto o meu irmão Pedro que ainda gostava mais de dormir do que de brincar.
- Nunca vi uma criança que tanto durma, disse a minha avó à minha mãe, enquanto tentavam mudar a disposição dos móveis da cozinha.
- O que é que a senhora quer? Então não reparou que o miúdo andou numa roda viva com as caricas e com o pião novo que o pai lhe comprou, até já perto da meia noite?
- Quando ele entrar para a escola, logo começa a dormir mais cedo, por agora deixa-o brincar que é o que as crianças devem fazer. Então tu não vês os filhos do Belmiro e da Rosália, que tão pequenos já andam a trabalhar no campo de sol a sol.
- E os cachopos ali do bairro dos pobres, coitadinhos, já andam ali pela fábrica do tomate a carregar com caixas. Coitadinhos! O lugar deles era na escola...
Eu, sempre atenta, seguia a conversa da minha mãe e da minha avó, agradecendo a Deus pelo facto de poder ir à escola aprender a ler e a escrever, em vez de ter de andar a trabalhar pelo campo ou na fábrica do tomate. Nunca mais havia de reclamar quando a minha avó me fosse acordar cedo para ir para a escola, a pé, ao frio e à chuva no rigor do Inverno.
Sorte tinham os filhos do senhor Dr., que iam de carro com chofer e tudo, no banco de trás muito empertigados e com roupas sempre novas e bonitas. Não é que as minhas não o fossem também, mas as deles vinham de Lisboa, conforme dizia a Maria Beatriz, assim se chamava a filha do senhor Dr., de lojas onde só entrava gente rica. As minha roupas, era a minha avó e a minha mãe que as faziam sempre com muito amor e carinho. Cada vestido, cada saia ou camisa era realmente uma peça de arte, que sempre enchia as minhas amiguinhas de inveja, enquanto eu me pavoneava toda vaidosa até à missa, ou até ao velho clube lá da terra, aos domingos à tarde, pela mão do meu pai que sempre nos mostrava, a mim e ao meu irmão, orgulhoso aos amigos e parentes.
O meu pai era sem dúvida o meu herói, e bonito que ele era. Nenhuma das minhas amiguinhas tinha um pai tão bonito como o meu, ai não tinham, não. Aliás, o meu pai e a minha mãe eram lindos e muito bonzinhos.
Bem, eram bonzinhos quando não fazíamos disparates, porque quando calhava e fazíamos traquinices, a coisa mudava de figura e os castigos chegavam, apesar das nossas lágrimas, muitas vezes de crocodilo, e dos nossos protestos e promessas de que nunca mais nos portaríamos mal.
Mas, aquele dia ia ser diferente. Na véspera, ao jantar, o meu pai de olhar iluminado disse a todos:
- Amanhã, tenho uma surpresa!
- É um cão perguntou o Pedro, é?
- Um gato, disse eu, eu antes quero um gato. Pai, posso ter um gato, posso?
A minha mãe que também não sabia de nada, perguntou:
- Uma surpresa? Mas uma surpresa para quem?
- Para toda a família, claro! Preciso que me arranjem um espaço aqui ao canto na cozinha. É só o que vos posso dizer.
- Rui, olha que eu não quero aqui nenhum cão. Se for que seja um gato, que sempre são mais asseados...
Só a minha avó se manteve calada sem se pôr a adivinhar o que era, provavelmente porque era a única que sabia do que se tratava.
Depois de termos mudado, conforme pudemos, a disposição da cozinha, e depois do Pedro se ter levantado convicto de que íamos ter um cão e que aquele espaço na cozinha era para a casota dele, eis que chegam o meu pai e o sr. Raimundo dos electrodomésticos com um grande caixote sobre um carrinho de duas rodas e nos entram pela cozinha adentro perante o espanto de todos nós.
- De certeza que é um cão da Serra, disse o meu irmão cada vez mais entusiasmado, enquanto eu chegava à conclusão que aquilo tudo, daquele tamanhão, não podia ser a casa do gatinho dos meus sonhos.
- Qual cão, qual carapuça, gritou o meu pai começando a abrir, juntamente com o sr. Raimundo a grande caixa de papelão, é um FRIGORÍFICO!
A minha mãe ia tendo uma coisinha ruim
- Então, Alice, gostas? Não era isto mesmo que tu querias?
A minha mãe continuava muda e entretanto já tinha deitado mãos ao grande caixote, para ver se o meu pai não a estava a enganar e que o vinha ali era mesmo um frigorífico.
Era um frigorífico! Um frigorífico Indesit, todo branquinho, com um grande puxador metalizado que quando se pressionava para baixo, fazia abrir a grande porta e mostrava um armário com prateleiras metalizadas, suporte para os ovos e caixa para a manteiga. Por cima, tinha uma outra portinha que puxada para baixo, mostrava um belíssimo congelador, que naquela altura ainda não congelava nada, mas que eu sabia que haveria de fazer uns belíssimos gelados tal como fazia o da minha amiga Clarinha, e que me fazia morrer de inveja. Depois de arrumadinho a um canto da nossa cozinha, e depois do sr. Raimundo ter partido, não sem antes fazer muitas recomendações à minha mãe, ficámos todos a olhar para aquela coisa que sabíamos que ainda nos havia de dar grandes alegrias.
- Que pena, disse o meu irmão, que na altura tinha seis anos, não é um cão da Serra...
Eu, acreditem ou não, não me importava nada que não fosse um gatinho.
Foi então que a minha mãe acordou daquele sonho e perguntou ao meu pai:~
- Ó Rui, e como é que o vamos pagar? Não gosto nada de prestações...
- Não vamos ter prestações. Já está pago. A minha mãe vendeu o cordão de ouro e dois pares de brincos e deu-me o dinheiro, para que vos pudesse fazer esta surpresa.
- Ora, filho., para que queria eu aquilo? Não usava nada. Assim ao menos, sempre temos algo de útil
A minha mãe deu um beijo à minha avó e agradeceu-lhe de todo o coração.
Nessa tarde, o meu pai chegou com gasosas e laranjadas para pormos a refrescar no frigorífico e a minha mãe foi à mercearia do tio Nicolau e comprou fiambre e refrescos Royal para fazermos gelados. A minha avó matou uma galinha, e depois de depenada e limpa pô-la no frigorífico, tal como a sopa que agora já podia ser feita numa panela maior e dar para mais dias, uma vez que tínhamos como mantê-la fresca sem que azedasse.
Foi realmente um dia feliz naquela casa e que eu recordo com uma saudade quase doentia.
Nessa noite de Verão, pusemos a televisão virada para o jardim e tomámos a fresca cada qual com uma laranjada na mão, excepto o meu irmão que era fã de gasosas.
Eu tinha quase oito anos e já percebia que éramos uma família feliz.
O meu irmão de garrafa em punho, olhou para cada um de nós e disse com aquele ar dele despreocupado e sonhador:
- Ó pai, até parece que somos ricos!
A avó, sempre a avó com a resposta certa na ponta da língua, rematou:
- Pedro, não parece que somos ricos, nós somos! Temos o que comer todos os dias, o que vestir e calçar, temos saúde e, principalmente, temo-nos uns aos outros, por isso, somos muito ricos.
Não disse nada porque a minha avó já tinha dito tudo, mas acabei por me rir quando o Pedro, sempre cheio de manha, exclamou:
- Bem, não somos mesmo ricos...somos é felizes!
«in Gente feliz com estórias felizes»