Por Marina Maltez
“A MORTE SAIU À RUA NUM DIA ASSIM…”
Assim começava mais uma das muitas letras que pela voz de Zeca Afonso chegavam aos ouvidos do povo português e incitavam à luta pela liberdade. Talvez a única luta que se justifique. Porque se nascemos livres e iguais não se justifica a opressão, o estabelecimento de regras e deveres que claramente violam esse direito sacrossanto de todo o ser.
E aqui centremo-nos unicamente no caso português. 25 de Abril de 1974, a senha marcada ecoou na hora certa. “Grândola, Vila Morena” dava o mote para a queda de um regime opressivo, criminoso já que às mãos do mesmo pereceram inocentes, muitos dos quais em breve recordados no Forte de Peniche, tal como o actual governo anunciou neste dia sempre emblemático na nossa cultura, história e política. Nomes recordados em estátuas, placas, pracetas e tantos mais que permanecerão no anonimato marcaram esses anos em que o povo aguentou em silêncio até que soltou o grito de liberdade há muito preso nas gargantas de corpos cansados pelo trabalho e desgastados pela fome.
Quantas vidas terão sido ceifadas? Quantos ainda trazem as marcas de anos de sofrimento, de tortura, de fuga, de dor e angústia? Quantos ainda se viram ao menor som com medo que alguém os leve e os faça cair no eterno esquecimento?
Não sou desse tempo. Sou daquelas gerações que estudam pelos livros. Tive a sorte de crescer e ter bem por perto João Gonçalves Malhão, um lutador antifascista que ficou cego por horas de tortura. Era um deleite para mim ouvir as suas muitas histórias que gravei religiosamente em cassetes depois de massacrar o Pai até me comprar um gravador! Os livros são a minha paixão, mas a Voz das Gentes é a minha Vida! São lições de história ao vivo, que jamais esquecemos, que nos ficam na memória gravadas a ferro e fogo e que se tornam exemplos, modelos a seguir conforme o Tempo passa e a personalidade se vai moldando.
Assisti, de forma global, às celebrações que se fizeram pelo país, aos inúmeros discursos e discursos sobre os discursos e espectáculos de canto, sessões de poesia e mais estátuas, bustos ou placas toponímicas e claro, muitos mas muitos cravos!
Não os critico. São as formas de honrar o dia e todo o seu simbolismo. O que me preocupa é que cada vez mais as camadas mais jovens sabem que se trata apenas de um feriado. Um dia que tem qualquer coisa a ver com cravos e uma música que se ouve neste dia sobre uma terra alentejana. Ou então é aquele dia a meio da semana em que os pais não trabalham e se vai passear.
Acredito que este foi um período da nossa História que não pode cair no esquecimento. É mera opinião, vale o que vale, mas os tantos que morreram só serão honrados (não com placas e coroas de flores) mas com uma verdadeira e incisiva educação cívica que explique às nossas crianças e jovens o que foi, o que simboliza, os valores que encerra este dia. E talvez assim possamos construir novas personalidades. Interventivas. Dinâmicas. Conscientes dos seus direitos, mas também das suas obrigações. Porque francamente…é ridículo que no país, independentemente da eleição, ganha sempre a abstenção. Centenas, milhares de portugueses ignoram de forma intencional esta obrigação nascida e cimentada em vozes que foram caladas, em lutas verdadeiras no cenário das ruas….e lá a morte saía à rua….e ceifava e ceifava…
Hoje a morte, pelo menos por cá, já não saí à rua. Hoje tudo pode ser dito. Filhos batem nos pais já idosos. Mulheres continuam a ser agredidas. As crianças no recreio brincam às lutas e volta e meia lá vai o INEM socorrer alguma. Alunos agridem professores. Professores agridem alunos. A claque A mata alguém da claque B e ainda destrói uma bomba de gasolina pelo caminho de regresso a casa. E…isto sim enche-me de vergonha e peço perdão aos que morreram para que eu hoje pudesse escrever livremente….os nossos políticos são porventura quem mais ceifa a carteira de todos os portugueses sempre com desculpas de um futuro melhor. Qual futuro? Como podemos projectar o futuro que deitamos no lixo a herança do passado e delapidamos o presente em tanta banalidade, em tanta corrupção, em tanto esquema medonho que fica por julgar. E num país em que Ricardos vivem em mansões após roubar milhões mas uma funcionária é despedida por dar uma refeição a uma criança….eu evoco Zeca e sim, gostaria que a morte saísse à rua e ceifasse as ervas daninhas deste jardim!