Por: Catarina Betes
Adorava chegar a casa dos meus avós maternos e encontrar a minha avó, sentada no quintal, num banquinho baixo de madeira, daqueles que só encontramos nas casas antigas, com o seu cabelo solto após o banho, que aos oitenta e muitos anos era ainda farto, comprido e encaracolado.
Uma ondulação que resistiu a uma vida inteira de repuxamentos, a dias passados sem tempo para tratar do corpo nem da alma, em que o trabalho não dava tréguas nem descanso.
Os seus caracóis eram agora grisalhos e enquanto a minha avó puxava com esforço, o braço já de si fraco e cansado, ia penteando os cabelos, num movimento descendente.
Eu observava, encantada, os pequenos caracóis que se formavam junto ao pescoço, que não se resignavam ao poder da travessa.
Pedia-lhe então se a podia pentear.
Ela passava-me a pequena travessa para as mãos, e eu, do alto dos meus nove ou dez anos, puxava uma cadeira, sentava-me atrás da sua cabeleira e iniciava, fascinada, a minha tarefa. Enquanto a penteava sem pressas, porque naquele tempo, o tempo não contava, ela ia-me dizendo, com orgulho, que o meu cabelo era como o dela, que se o deixasse crescer logo via.
Ninguém mais, na família, o tinha herdado. Apenas eu, a neta mais nova, que nasceu tardiamente. Sentia-me rejubilar interiormente. Especial.
Eu olhava para as pontas escuras e desgrenhadas do meu cabelo curto e cheio de caracóis e por dentro regozijava com a perspectiva de o deixar crescer.
Pensar na luta que a minha mãe e eu travávamos, sempre que depois do banho, se impunha passar um pente ou uma escova, que nem o shampoo comprado especificamente para o meu tipo de cabelo, na farmácia, conseguia domar, era um pensamento que me fazia arrepiar e ficar com pele de galinha. Não, admitia interiormente, quanto mais curto melhor.
Mas os da minha avó…eram sem dúvida o fruto do meu encantamento.
Após penteado o cabelo, era chegada a hora de fazer a trança. Escusado será dizer que foi esta avó quem me ensinou a fazer tranças.
Com a sua voz calma e doce, dizia-me para passar à frente, ora uma, ora outra mecha de cabelo, até a trança se ir formando, qual truque de magia.
Atava-a então e depois prendia-a ela, com os seus dedos trémulos, atrás da cabeça. Normalmente, eu colaborava no fim, colocando um ou outro gancho.
Durante os longos minutos que todo este processo demorava, conversávamos.
Falava-me da sua terra, porque apesar de se ter vindo embora aos dezoito anos, era ainda a sua terra.
Percebo agora que pertencemos sempre ao lugar onde nascemos. Por mais estradas que percorramos, não há nenhuma que não nos conduza ao início do caminho.
Falava-me da sua infância. Da casa onde vivia com os irmãos e os pais, de outros familiares com quem cresceu e se relacionou, pessoas que na sua maioria já não existiam.
Existiram numa outra vida, num outro tempo.
Mas ao ouvir as suas palavras, eu sentia como se todos os nomes que ela pronunciava, fossem ainda reais, fizessem ainda parte das nossas vidas.
O amor e o carinho com que os recordava, dava-lhes existência novamente, fazia-me imaginar como seriam, criava na minha mente cenas das histórias que ouvia, atribuía às personagens rostos, expressões, e ouvia admirada, mergulhada numa nuvem de encantamento, da qual nunca me apetecia descer.
E creio que foi então que o meu amor pelas histórias aconteceu.
Recordo outras tardes em que sentada no mesmo banco, a minha avó remendava uma roupa ou um pano qualquer. Sim, um pano. Porque todos os panos da cozinha eram aproveitamentos de um tecido e todos eram impecavelmente cozidos.
Às vezes sentia-me com sorte e pedia-lhe para passar a ferro. Quando ela estava prestes a terminar, desligava o ferro da corrente eléctrica e colocava os tais panos da cozinha para que eu passasse, enquanto o ferro ainda estava quente.
E eu passava, claro. Passava e dobrava, meticulosamente.
Enquanto a minha avó costurava, sentava-me ao seu lado. Quando ela tinha tempo, talhava roupas para as minhas bonecas, que eu depois cozia, maravilhada com a experiência de fazer a agulha entrar e sair do tecido.
Talvez por isso, ainda hoje eu goste de me entreter com os trapos e dê por mim tantas vezes de agulha e linha em punho, horas a fio, em que tudo à minha volta parece deixar de existir, o meu pensamento aparta-se do mundo e centra-se unicamente na tarefa empreendida.
Temos mais dos nossos em nós do que supúnhamos, quando mais novos.
Vamo-lo percebendo, com o passar dos anos, com o passar da vida em frente aos nossos olhos, tantas vezes fechados.
Com esta avó aprendi o poder da entrega, a importância do reconhecimento das nossas raízes, o dever de as manter vivas e bem presas à terra, porque são elas que nos mostram que não provimos do vazio, que determinam até onde podemos ir.