Por: Catarina Betes
É quase Natal.
E sem sabermos muito bem porquê, vamos entrando nesta quadra como quem entra numa sala de cinema, conhecedor de que, após aquela hora e meia, um final feliz surpreenderá. Ou não.
Quando penso no Natal, penso particularmente na minha infância. No lume aceso, nas minhas faces quentes e vermelhas, na excitação impossível de controlar. E não eram, no meu caso específico, o calor da lareira e os presentes, o motor do acaloramento. Era sim a magia no ar, que me deixava agitada, o contentamento absoluto que só conhecemos quando somos crianças. Relembro com frequência essa sensação de enlevo interior, essa noção de felicidade integral, esse sentimento possante que nos inunda o peito que, por segundos, sentimos poder agarrar com as nossas próprias mãos…
Quando crescemos, esse sentimento como que alvora, desaparece. Foge por entre os nós dos nossos dedos. E então pensamos, erradamente, que não somos felizes. Escapa-nos a perceção de que a felicidade plena só é possível de ver, agarrar e acariciar, na infância. Na vida adulta ela existe, mas simplesmente, não a vemos. Existe nos momentos em que rimos, em que abraçamos alguém de quem gostamos, existe no simples sorriso que se esconde por trás de tudo e de coisa nenhuma. No sorriso de quem simplesmente sente o prazer de estar vivo. Mas é trabalhoso estar atento, no meio de persistentes apelos, no meio de tantas incumbências que nos sorvem o simples contentamento de viver.
Mas entretanto chega o Natal. E sem sabermos muito bem porquê, vamos dispensando mais atenção ao que existe fora de nós e das nossas inquietações interiores. Cedemos ao apelo da música, das luzes, das exteriorizações de carinho de pessoas que conhecemos e vamo-nos deixando envolver. Nem sempre é fácil deixar o espírito natalício entrar. Mas de algum modo, sabemos que ele vigia e avalia qualquer pequeno movimento que lhe possibilite entrar por nós adentro. Mesmo nos momentos mais custosos, reconheço que nunca lhe consegui fechar a porta. Não a deixei totalmente aberta, mas encostei-a.
É curioso como tantas vezes enceto o caminho de mim, a meio da minha escrita. Já o tentei parar, admito. Imensas vezes. Pelo simples motivo de que, quando crio na minha mente personagens que apenas existem na minha imaginação, toda a gente pensa, erradamente, que sou eu, quando não sou.
Quando o faço, escancaro a porta, não me escondo. Quando iniciei esta coisa de escrever, comentei com alguém que me sentia um pouco exposta. Isto porque, muito embora a maioria das minhas histórias não falem de mim, mostram a minha forma de ver e analisar o mundo. Então obtive a resposta de que se não me quisesse expor, mais valia estar quieta. E é verdade. Contra factos não há argumentos.
Por isso, com o tempo, fui assumindo e consciencializando a minha mente de que, nesta coisa das palavras, ou dizemos o que temos para dizer, ou ficamos calados. E percebi que não escrevo a pensar se alguém me irá ler ou não. Podem até considerar a minha escrita medíocre, comum, que muito sinceramente, é-me indiferente. Escrevo o que bem me apetece e ninguém é forçado a ler até ao fim. Pode interromper a qualquer momento.
Chegamos a uma fase da vida em que, se não nos conseguimos corrigir até então, mais vale aceitarmo-nos … E os quarenta são uma óptima idade para o fazer.
Todos temos defeitos. O meu maior de todos, tenho a certeza, é falar demasiado. Mas curiosamente, só o faço quando e com quem sou feliz! Quando estou feliz, entro num estado de excitação pura, quase infantil e falo, rio, até me fartar. Às vezes esqueço-me que nem sempre somos aceites, que nem sempre os outros nos guardam a compreensão e aceitação que lhes reservamos. Mas sinceramente, já me preocupei mais, com “os outros”. Até porque, quem me conhece bem, sabe que, por muito que fale, há algo que nunca faço: magoar intencionalmente alguém. E no entanto, a mim, já me têm magoado, mesmo que não o percebam, porque, com a graça de Deus, também aprendi, ao longo destes quarenta anos, a disfarçar o que não quero que os outros saibam.
Mas continuemos no trilho do Natal. Há quatro anos atrás, o meu pai partiu, no dia vinte e cinco de dezembro. Após um mês nos cuidados paliativos, mês esse em que me perguntou por diversas vezes, quantos dias faltavam para o Natal e eu nunca entendi porquê. Não entendia, porque o meu pai nunca ligou muito ao Natal. Para ele, era um dia basicamente igual a todos os outros.
Ao longo dos anos, entre filhos e netos, lá se foi modelando discretamente, embora nunca se tenha expandido muito relativamente às datas especiais, incluindo a data do seu aniversário. Falo no meu pai, porque a sua morte marcou o dia de Natal para o resto da minha vida. Mas não, como seria de supor. Com a sua partida, aprendi coisas que só mais tarde percebi. Eu e os meus irmãos tínhamos perdido a nossa mãe quatro anos antes e a mágoa era ainda palpável, recente. Quatro anos parece muito tempo, mas no contexto da perda, os anos não são nada. Naquele mês de dezembro, aprendi mais, que nos primeiros trinta e seis anos de vida. Aprendi sobretudo, que o amor e a dor não são opcionais e, quase sempre, um não existe dissociado do outro. Em cada dia que entrei no elevador que me conduziria ao piso onde o meu pai estava, assim que aquelas portas se cerravam, o meu sofrimento adormecia, como por doce magia. E quando as portas se abriam, sentia-me caminhar sobre uma nuvem de amor. Talvez nem todos sintamos do mesmo modo estes momentos, mas comigo foi precisamente assim. Saía do elevador como se os meus pés não pesassem mais sobre o chão e os passos que me conduziam eram todos eles guiados por um sentimento arrebatador de amor. Amor absoluto, pleno, incondicional. Durante todo o tempo da visita, toda eu era amor pelo meu pai, não existia nada mais para além das paredes daquele quarto. Dar-lhe mais uma colher de comida era o meu único objetivo e vê-lo sorrir, o meu único sonho. Nada mais importava. Só ele. Ele era tudo e eu estava inteira ali, completamente subjugada ao afeto que sentia e à perceção de que o dia seguinte não existia. Apenas aquele momento. Por isso percebo hoje que a dor traz em si um pouco de felicidade também. Uma felicidade que se extingue num sentimento de afeição total, que só nos momentos penosos, conseguimos decifrar.
Percebo hoje que o meu pai esperava o Dia de Natal para partir. De algum modo sabia. E esperou.
Aceitámos com a resignação de quem aceita o que sabe não poder mudar e continuámos a celebrar o Natal, juntos, sem dor. Porque o Natal só faz sentido se for experienciado em amor. De alguma forma, os laços familiares, que sempre foram fortes, estreitaram-se ainda mais, e viver o Natal é celebrar as memórias felizes que vivemos em família, aceitando as mais árduas, que sempre existirão, mas que nos conduzem, inconfundivelmente, a um caminho “maior”.
Não dou lições. As que preparo, reservo para os meus alunos, que tal como eu, preferem uma linguagem simples, direta (acessível aos ouvidos mais desatentos) e se possível, conetada sempre e diretamente ao coração. Porque acredito que somos o que sentimos e se não sentimos nada de bom, não transparecemos mais do que isso. Somos transparentes, à luz da vida e das regras que a mesma encerra.
Se a vizinha do lado não responde ao bom dia da minha filha mais nova, é porque interiormente não tem nada de bom a dizer, por isso, efetivamente, mais vale estar calada. Mas incito a minha filha a continuar a ser como é. Os outros não merecem que mudemos porque eles não têm nada de bom para dizer ou para dar.
Em título de conclusão, (porque tanta sinceridade está já a dar cabo de mim…!), termino com a memória de um presente que eu e os meus irmão recebemos no Natal seguinte à partida do meu pai. Uma fotografia do seu último aniversário, rodeado pelas mulheres da família, onde o seu olhar, como sempre, não se focava nas luzes da câmara. Estava longe, como sempre lhe percebi. A sua reação à câmara fotográfica, fazia-me sempre memorar uma lenda do povo índio, que acredita que a lente da câmara lhes rouba a alma. Quem sabe.
Por trás da foto, lê-se:
“ Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. (Eclesiastes 3 :1)
E o melhor tempo é aquele que passamos em família.
Feliz Natal!