Por: Catarina Betes
Há gente que fica na nossa memória. Por vezes são apenas vultos, esboços, que a cortina do tempo insiste em apagar. Mas por algum motivo, resistem. Deixam-se ficar.
Maria Amélia vivia e trabalhava em Lisboa, numa época em que as mulheres não existiam sozinhas, poucas tinham empregos e raras não tinham marido.
Recordo quando a via chegar aos fins de semana, à casa que tinha na minha rua. Maquilhada, vestida com roupas extravagantes. Tinha também um brilho nos olhos que eu desconhecia de onde vinha.
Só mais tarde percebi que era fruto da liberdade em que vivia.
Não teve marido nem filhos, nem me pareceu em nenhum momento que deles tivesse sentido a falta.
Viveu a vida que quis, viajou, conheceu o mundo e regressou à aldeia sempre que lhe apeteceu.
Era tratada por menina e eu perguntava-me porquê. Só depois percebi que quem não casava não ascendia ao estatuto de mulher adulta. Continuava menina pela vida fora. (Estranha vida esta).
E quando partiu deste mundo, aos noventa e poucos, foi “a menina Amélia que morreu”, ouvia-se na rua, enquanto os sinos dobravam, no alto da torre da igreja.
Nunca me pareceu uma mulher deste tempo e eu observava-a, do cimo dos meus sete ou oito anos com a curiosidade caraterística de quem vê um espécimen diferente. Falava alto e ria muito, num tempo em que as mulheres ou não sabiam, ou não tinham motivos para sorrir.
Entrei algumas vezes na sua casa. E deliciava-me. Com as cores, os cheiros, o som da vida e da independência num tempo em que a mulher era pouco mais que um farrapo. Mas aquela não.
Viveu como quis, saia de casa de cabeça erguida e não tenho dúvidas, no seu modo solitário de viver, aquela mulher, sim. Naquele tempo, foi feliz.